Gestão documental - descartar ou não?
Especialista critica projeto de lei aprovado no Senado que autoriza destruição de documentos após digitalização
No dia 14 de junho, o plenário do Senado aprovou um projeto de lei,
apresentado em 2007 pelo senador Magno Malta (PR-ES), que determina que
documentos em papel públicos e privados poderão ser destruídos após
serem digitalizados. A proposta agora será debatida na Câmara dos
Deputados. O senador Armando Monteiro (PTB-PE), relator das emendas de
plenário, argumentou que a lei proporcionaria uma economia de cerca de
R$ 1,5 bilhão por ano à União.
Entretanto, entidades ligadas a setores como arquivologia,
história, ciências sociais e da informação e direitos humanos, reunidas
no movimento "Queima de Arquivo, Não", argumentam que o projeto
representa uma ameaça à transparência pública e à preservação da memória
nacional. Charlley Luz, professor do curso de pós-graduação em Gestão
Arquivística da Fespsp (Fundação Escola de Sociologia e Política de São
Paulo), detalha essas críticas e diz que a pressão continuará durante a
tramitação na Câmara.
Qual é sua opinião sobre o projeto?
Esse projeto está dez anos defasado do ponto de vista tecnológico,
no sentido de que a tecnologia que ele preconizava em 2007 era de fato
novidade, era algo que era importante na época, mas dez anos depois já é
uma tecnologia um tanto quanto defasada. E do ponto de vista de
patrimônio cultural e patrimônio documental, esse projeto é uma grande
ameaça, por autorizar a eliminação de documentos originais depois de
serem digitalizados. Esse é o grande risco que é apontado pela maioria
dos especialistas em relação ao PL 7.920, antigo PLS 146: esse atentado à
memória nacional, esse perigo que existe de apagarmos a história que a
gente gera hoje. Porque um documento não nasce para ser um documento
histórico, ele nasce para apoiar alguma atividade, alguma ação. Ele se
torna histórico com o passar dos anos. E, pelo projeto de lei
apresentado por Magno Malta, aprovado pelos senadores e que agora foi
para discussão na Câmara, não haveria esse tempo, porque os documentos
seriam eliminados depois da digitalização.
Também existiria risco de adulteração de documentos?
O processo de certificação digital que é estabelecido pelo projeto
de lei, do ponto de vista tecnológico, é perfeito, no sentido de que
qualquer alteração que haja no documento anterior ao processo de
certificação, isso passa desapercebido. Alterações depois da
certificação são identificadas. Então, há a possibilidade de que sejam
certificados, autenticados documentos que foram adulterados. Dessa
forma, hoje a legislação brasileira já dá uma base para a gente ter uma
segurança em afirmar se um documento é ou não autêntico, que é essa
possibilidade de utilizar num processo judicial, por exemplo, um
documento digitalizado, porém, se uma das partes recorrer, eu tenho que
mostrar o documento autêntico. Pela lei, isso estaria comprometido,
porque o documento autêntico seria eliminado.
Agora que o projeto vai para a Câmara, o senhor acredita que
essa pressão que está sendo feita por várias entidades pode surtir
efeito e a proposta ser derrubada?
Estamos contando com isso, porque o projeto precisa urgentemente ser
discutido, tanto pela área de história, como pela tecnológica, pela
indústria de digitalização. Estamos fazendo pressão junto aos deputados
para que a gente consiga (realizar) uma audiência pública, na qual
alguns especialistas possam identificar os problemas maiores que existem
hoje no projeto. Eu, enquanto profissional da informação, não tenho
problema nenhum com relação à tecnologia, pelo contrário, já escrevi
dois livros sobre o assunto. Eu acho que a tecnologia está aí mesmo para
ajudar a gente, no entanto, como está colocado o projeto de lei,
apresenta um risco para a segurança jurídica, para a memória nacional,
utiliza uma tecnologia que já está defasada, que é a tecnologia de
scanner. Hoje, o scanner é uma tecnologia que ela é commodity, ela já é
arroz com feijão, ou seja, todo mundo já tem que ter o scanner, ela não
pode ser mais uma tecnologia principal. Então, a gente espera que os
deputados abram essa possibilidade de debate, para que a gente leve
esses pontos, já que não houve isso no Senado. Foi muito estranha a
forma como o Senado colocou essa lei para debate.
Se essa lei for aprovada também na Câmara, existe possibilidade de contestação na Justiça?
Provavelmente, sim. Esse projeto de lei foi desarquivado para ser
votado no final do ano passado. Ele foi apresentado para a apreciação da
Comissão de Constituição e Justiça na última plenária do ano, dia 27 de
dezembro, ou seja, já estava todo mundo com vontade de tirar férias,
aquele clima de Brasília de final de ano. E o projeto já havia tramitado
dez anos antes; havia sido substituído por outro que já foi debatido,
que já foi aprovado, e esse projeto teve veto presidencial na época
exatamente nesse ponto da questão da eliminação de documentos originais.
Então, há muita possibilidade de haver recurso por parte do Ministério
Público, de instituições, de entidades, por conta exatamente dessa falta
de cuidado que o autor do projeto teve em trazer, desarquivar esse
projeto que já foi debatido e que já teve um substitutivo. Foi muito
estranha a forma como o senador trouxe isso de volta à pauta do Senado e
a forma como ele queria que aprovasse ali na hora, sem muito debate.
Para sorte da memória nacional, havia senadores na hora que não quiseram
aprovar o projeto, e por isso hoje a gente está conseguindo debatê-lo.
O que o senhor acha do argumento de que essa lei geraria economia para os cofres públicos?
Na prática, hoje, se a gente for aplicar a gestão documental, já
deve ocorrer esse processo de avaliação e eliminação. O que ocorre hoje é
que o Estado brasileiro, o governo federal não investe adequadamente na
gestão documental. A gente não tem arquivistas suficientes nos
ministérios para fazer a prática de gestão documental, que é exatamente a
avaliação e enquadramento desse documento numa tabela de temporalidade e
uma eliminação posterior. O argumento deles é: "Ah, a gente digitaliza e
tem que guardar o documento, a gente gasta com a armazenagem desse
documento". Bem, para armazenar documento digital também se gasta, e
talvez muito mais que o custo de um depósito com segurança. Aí, a gente
está falando de investimento em servidores, em plataformas tecnológicas,
licenciamento para indústria de informática, profissionais de
tecnologia de informação, links dedicados 24 horas, redundância de
servidores e tantos outros instrumentos tecnológicos que custam bem mais
do que um depósito com segurança. Então, esse argumento de fato é
proselitismo; estão usando esse argumento, mas não confere. Foi feito um
estudo junto ao Arquivo Nacional, com todo o processo de eliminação de
documentação que eles fizeram autorizada pela legislação que a gente tem
hoje. Nos últimos cinco anos, foram eliminados mais de 80 km de
documentos. Isso representa uma economia de mais de R$ 60 milhões.
Então, na prática, eles já poderiam estar fazendo essa economia sem
estar gerando todo esse debate, esse desgaste desnecessário.
Fábio Galão
Reportagem Local
FONTE: https://www.folhadelondrina.com.br/opiniao/gestao-documental-descartar-ou-nao--981471.html